Até breve, Margarida.
— Não vou tomar o remédio!
A frase veio seguida de um muxôxo. Cruzou os braços e virou o rosto de lado. Estava decidida a rejeitar a medicação e não havia força nesse mundo que a fizesse mudar de idéia. Deitada na cama, impunha sua vontade, sem temor.
— Mas é para seu bem! É só engolir, o comprimido é pequeno, não vai nem sentir, prometo.
— Não, já falei! Vai embora, vai...
O diálogo pode parecer, à primeira vista, uma conversa entre um adulto e uma criança. Não deixa de ser verdade. Um dos protagonistas é, sim, um adulto. O outro, uma criança — uma menina de 92 anos.
Ela alternava momentos de comportamento infantil com fases de impressionante lucidez — lembrava-se de fatos ocorridos há 60, 70 anos, ou mais.
Descrevia os acontecimentos com riqueza de detalhes, os nomes e datas pululando na ponta da língua. E então, sem aviso, vinha uma teimosia, uma vontade inexplicável de verbalizar uma dor que não sentia ou chorar uma tristeza sem motivo.
A tentativa de medir o nível de glicose no sangue – só possível mediante uma picada no dedo — foi igualmente fracassada. Os vizinhos devem ter pensado que alguém estava tentando matar a idosa, tamanho o escarcéu que ela fez ao ver a agulha do aparelho.
Como o que não tem solução resolvido está, ela foi deixada em paz. Logo estaria dormindo e acordaria no outro dia — se Deus quisesse — lúcida.
A diabetes empobreceu em muito a vida de Margarida. Aos 80 e poucos anos, enfrentou a amputação da perna direita, após um ferimento no pé ter descambado para uma necrose irreversível, pondo em risco sua vida.
Valente, saiu da mesa de operações e, alguns meses depois, experimentava uma prótese. Usou por algum tempo, depois desistiu. Nunca mais pode chegar no fogão e fazer a galinha frita com arroz, que era sua especialidade.
Passou a depender dos outros para as necessidades mais básicas. Terrível doença aquela, que nos prostra e aniquila qualquer resquício de orgulho e dignidade.
E, não satisfeita, aniquila também a memória, as relações, a história... tudo aquilo que nos faz ser quem somos e que, de tudo isso despidos, nos transforma em estranhos aos olhos daqueles que usufruíam de nossa intimidade.
Certo dia, Margarida passou mal e teve que ser levada ao hospital. Injeções, soro, exames... Finalmente, resolveram deixá-la em paz. Logo ela estava dormindo, mas não acordou no dia seguinte. Se Deus quiser, está lúcida e feliz, em outro plano. Até breve, vó.
- Coluna Trivial, de Clóvis Augusto de Melo, publicada hoje (20), no "O Diário".

Blz. Acompanho a coluna pelo Diário.